No início de dezembro de 2019 o mundo descobria o COVID-19, o que começou em uma cidade chamada Wuhan, em uma província chinesa, passou rapidamente a espalhar-se pelo mundo de maneira tão rápida e abrupta quanto o encurtamento das distâncias causadas pelo mundo globalizado e integrado.
Em meados de janeiro ouvi pela primeira vez sobre o assunto, ainda quando estava cumprindo créditos do curso de doutoramento em ciências jurídicas em Lisboa, Portugal. Naquela altura, havia dois suspeitos de contaminação pelo vírus e eu, sinceramente, não acreditei que o tal vírus atravessaria o oceano. Em fevereiro, ao retornar ao Brasil recebemos orientações para compra de máscara e para minha surpresa já estavam em falta nas farmácias.
Desde 30 de Janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o surto uma EMERGÊNCIA DE SAÚDE PÚBLICA DE ÂMBITO INTERNACIONAL solicitando uma ação coordenada de combate à doença.
Em 11 de março de 2020 a OMS declarou o surto uma pandemia. Até 7 de abril a doença foi confirmada em mais de 200 países e territórios. E é claro o Brasil está entre estes países.
Neste contexto várias medidas legislativas foram editadas no Brasil, dentre elas a portaria interministerial nº 5 de 17 de março de 2020, que dispõe sobre a compulsoriedade das medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública prevista na Lei nº 13.979/2020. Em seus artigos 4º e 5º estabelece medidas criminais em caso de descumprimento de algumas medidas adotadas pelo governo.
Com o intuito de seguir uma lógica didática cabe esclarecer que a Lei nº 13.979/2020, estabelece que as autoridades poderão adotar medidas como isolamento, quarentena e determinar a realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais e tratamentos médicos específicos. Pois justamente os artigos 4º e 5º da portaria expressão que sob algumas circunstâncias quem descumprir as medidas adotadas poderá responder pelos crimes de desobediência ou crime de infração de medida sanitária preventiva.
Assim, cabe ressaltar alguns tipos penais previstos em nosso ordenamento, que antes tão pouco estudados, agora vistos com outros olhos: um olhar atento e de interesse público, que podem se adequar à situação: 1º) crime de contágio de moléstia grave (art. 131, do Código Penal); 2º) crime de perigo para a vida ou saúde de outrem (art. 132, CP); 3º) crime de epidemia (art. 267, do CP); 4º) crime de infração de medida sanitária preventiva (art. 268, do CP) e; 5º) crime de desobediência (art. 330, do CP).
Vejamos uma a um:
No primeiro, previsto no artigo 131 do Código Penal o legislador descreve: “Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.” Para a configuração desse crime faz-se necessário que a agente tenha a finalidade ou vontade específica de contaminar outras pessoas, praticando ato capaz de transmitir doença grave. Não basta simplesmente descumprir as medidas de quarentena ou isolamento.
No crime previsto no artigo 132: “Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente: Pena - detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave”, menos grave que o que comentamos anteriormente, trata-se de um crime de perigo concreto, ou seja, é necessário a prova da existência do perigo para a sua configuração.
De qualquer maneira, nos dois casos a pessoa além de ter ciência ou pelo menos suspeita de que porta a doença, por meio de realização de exame médico ou por apresentar os sintomas no COVID-19, deve de fato ter a intenção de colocar a saúde de outras pessoas em risco.
No que diz respeito ao artigo 267, o Código Penal dispõe: “Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos: Pena - reclusão, de dez a quinze anos.” Esse ilícito penal, com pena de até quinze anos de reclusão, portanto, já mais grave que os outros, exige para a sua configuração que o agente de causa a epidemia conscientemente. Cabe ressaltar: epidemia até então não existente que, como sabemos, não é o caso.
Por fim, os dois últimos crimes são aqueles citados na portaria interministerial, quando há o descumprimento das medidas adotadas pelo governo, quais sejam: Os crimes de infração de medida sanitária preventiva e o crime de desobediência.
O artigo 268 do Código Penal prevê que: “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa: Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa.” e o artigo 330 determina: “Art. 330 - Desobedecer a ordem legal de funcionário público: Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.”
Pois bem, na portaria está previsto em seu artigo 4º que quem descumprir as medidas de isolamento e determinação de exames médicos, testes laboratoriais ou tratamentos específicos poderá responder pelos crimes acima mencionados. ocorre que para tanto há a necessidade, de no caso de isolamento, de que a pessoa “doente” receba prévia comunicação sobre a compulsoriedade da medida e, no caso dos tratamentos, exames e testes, além da necessidade de prévia comunicação, tal exigência deve estar fundamentada em indicação médica ou de profissional de saúde.
No artigo 5º do mesmo diploma há a previsão de que poderá responder pelos crimes de desobediência ou/e infração de medida sanitária de prevenção quem descumprir a medida de quarentena, porém para que isso ocorra, ou seja, para que o sujeito que descumpre a medida de quarentena responda criminalmente tal medida depende de ato específico das autoridades competentes, que no caso é: ato administrativo formal e devidamente motivado, editado por Secretário de Saúde do Estado, do Município, do Distrito Federal ou Ministro da Saúde ou superiores em cada nível de gestão, publicada no diário oficial.
Cabe salientar que o crime de desobediência se caracteriza quando há uma ordem específica de um funcionário público dirigida a uma determinada pessoa, portanto, dificilmente se configure.
Em nosso entender o tipo penal mais adequado à quem descumpre as medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública causada pelo COVID-19 é o previsto do artigo 268, de infração de medida sanitária preventiva.
Dessa maneira há sim a possibilidade de incorrer em crime quando se descumpre as medidas adotadas pelo governo, porém há também requisitos para que isso ocorra. Lembrando que os Estados somente podem se socorrer do Direito Penal quando não há mais nenhuma via de controle social, afinal o Direito Penal é a “ultima ratio”.
Texto por: Camila Moura
Publicado por: Gazeta Regional